Aborto

aline
4 min readAug 22, 2020

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A depender dos ânimos, todo debate sobre direitos reprodutivos tende a encerrar no mesmo beco: estes acreditam que aborto é assassinato, aqueles acreditam que não. Neste ponto da conversa, já importa pouco que o impasse tenha se reduzido a termos tão mínimos quanto distorcidos, o imperativo moral de que se servem os contrários não acata ponderação ou nuance, numa equação entre vida e morte a vida há de ganhar, sempre, ponto.

É compreensível que uma criatura indefesa seja apelativa e comovente, que sua existência baste e pareça eclipsar toda e qualquer circunstância que conduza a mulher à conclusão de que esta existência é incompatível com a sua própria. Há de fato embate entre vida e morte diante de nós, mas ele não se dá unicamente nos termos que os contrários ao aborto apresentam. É cínico negar que o feto é uma forma de vida, de vida humana, e que esta vida está sob risco quando o aborto se torna uma alternativa viável. Que algo se perde, desaparece, é evidente e irrefutável, mas em prol de quê desaparece e se perde? Qual o ganho na outra ponta, que de alguma maneira justificaria o aborto?

Tão inegável quanto a existência pulsante de vida, no feto, é sua condição precária e dependente, incompleta — cada vez menos, é verdade, conforme decorrem as semanas de gestação — em âmbitos fisiológicos, psíquicos, jurídicos inclusive. A condição de estar vivo é o nascimento que inaugura, este é o marco a partir do qual contamos o tempo de vida de uma pessoa e, neste debate específico, é sua proximidade que determina os limites do aceitável para a maioria dos favoráveis à legalização. Pois me parece também razoável que não se considere um feto de 2, 4, 8 semanas equivalente a um de 28, 32 semanas.

A precariedade da vida do feto é temporária, mas é absoluta enquanto dura. Há um período de tempo em que ele é mais uma potencialidade do que um corpo de fato, certamente ainda não é uma pessoa, ainda não nasceu, ainda não viveu. E sua presença, sua existência nesse mundo, ao longo dos meses até o nascimento e por vários anos ainda depois, depende da mulher que o gesta. Esta, sim, nada abstrata nem potencial, física e mentalmente apta, responsável por si, mergulhada em circunstâncias que a levam ao impasse de manter ou não uma gestação, arcar ou não com a maternidade.

Pois associar um feto abstrato a uma mãe igualmente abstrata numa conversa é um recurso cômodo para julgamentos e falsas conciliações como “soube fazer, tem que criar”, “entrega para adoção”, etc. É tremendamente mais difícil encontrar equilíbrio se pensarmos, por exemplo, numa adolescente de 14 anos; ou numa caixa de mercado que quer se demitir; ou numa mulher num relacionamento abusivo; ou numa atleta no auge de sua carreira; ou numa estudante que trabalha de dia e faz faculdade à noite; ou numa mulher já mãe de três crianças, sem tempo ou dinheiro para uma quarta. Muitas mulheres, também em situações adversas, abraçam alegres a ideia de um filho, mesmo não planejado. Outras sondam a possibilidade e pendem na indecisão mas acabam preferindo seguir adiante com a gravidez. No entanto para algumas os óbices são irrevogáveis e a decisão de interromper é tão consistente que elas se submetem a procedimentos perigosos e arriscam suas vidas em nome dela.

O fato de as mulheres no Brasil já fazerem abortos clandestinamente não funciona, para alguns, como argumento lógico para a legalização. O cerne desse argumento é socioeconômico e sua intenção é evidenciar quais mulheres morrem em decorrência da proibição, mas se isto não basta como retórica, então que sirva ao menos como mesura do comprometimento das mulheres com sua escolha e sua liberdade.

O aborto deveria ser descriminalizado e legalizado não porque já acontece (aos montes, clandestinamente), mas porque gravidezes indesejadas acontecem (apesar de tanto cuidado e informação). Acontecem simplesmente porque métodos contraceptivos são falhos, porque os organismos são únicos e respondem diferentemente a medicações e rotinas. Deve ser legalizado porque as circunstâncias muitas vezes nos ultrapassam e desafiam, porque o compromisso de dar à luz e criar um filho deve — deveria — ser feito com toda a consciência, vontade e coração.

Impressiona menos a força com que algumas pessoas defendem a vida do feto do que sua convicção retilínea de que as mulheres, com suas vidas, planos, corpos e futuros, devem abandonar-se diante da contingência. Por que afiançar a leviandade, a inconsequência, a irresponsabilidade e a falta de alma das mulheres diante de uma decisão já tão crucial, tão custosa? Por que assombra tanto que mulheres tenham esse poder de decisão derminante sobre sua descendência? É um poder de natureza ética proporcional ao imenso poder fisiológico de gerar um ser humano, de oferecer o próprio corpo à gestação, ser ela mesma outra coisa além de apenas si, ser continente, guarida, morada, fonte, nutrição. O acesso aos diretos reprodutivos — conceito há muito solidificado em países socialmente mais desenvolvidos — que nós as mulheres demandamos não está fora do escopo de nossa responsabilidade com a espécie humana, na verdade, é sua contrapartida.

(escrito em 2016)

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aline

sorte no amor, azar no jogo e um fiapinho de manga preso no dente.