Disfrutalo en su honor

aline
4 min readNov 2, 2020

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O mundo já se dividia entre vivos e mortos, porém aos seis anos eu apenas e ainda não tinha me dado conta disso. Eu sabia, por exemplo, que minha bisa tinha morrido antes do meu nascimento mas que chegou a saber que minha mãe me esperava. A mim disseram que ela celebrou minha notícia; eu fui a primeira bisneta, dos nove, que vó Maria Helena não pôde ver nem abraçar. Parece triste agora, mas eu não senti nenhuma falta dela, o mundo estava cheio de gente por mim e para mim.
Aos seis anos, portanto, eu sabia que havia mortos mas eu ainda não tinha visto ninguém se tornar um deles. Então uma menina, vizinha da mesma quadra, amiga na mesma escolinha, foi atropelada e morreu ali na rua, sem receber socorro. Minha mãe chorou muito ao telefone, falando com a mãe da menina, e depois chorou conversando com outros adultos, todos realmente muito abalados, a dor da perda de um filho parecia pesada demais para uma família só sentir. Eu fiquei triste, claro, na medida compatível ao entendimento, senti falta da Roberta na escola por uns dias, até que não senti mais.

Quando eu tinha nove anos, nossa tia mais querida, a que contava as melhores histórias e dava as melhores risadas, a mais brava e também a mais espirituosa, descobriu que seu tempo estava acabando. A melhor explicação para câncer que um adulto conseguiu me dar foi: “tia Lu, tadinha, vai sofrer feito um cachorrro até que…”. A tia Lu veio nos visitar depois do diagnóstico. Atemorizada, eu antecipei tudo, eu me preparei para algo grandioso que sequer poderia nomear. Era como se a tia Lu não fosse mais só a tia Lu, ela traria a Morte consigo. Eu observei atentamente aquela mulher durante os par de dias que ficou em casa e ela — isso era assustador de verdade — agia como se tudo estivesse normal. Eu não senti cheiro de doença, eu não vi morte nenhuma ao redor dela. Tia Lu ainda se importava se a gente fazia coisa errada, e cantou as músicas de sempre com a gente, e preparou salada pro almoço, discutiu política com meus pais. Ela não se despediu de nenhum jeito particularmente definitivo. Eu só a vi de novo uns dois ou três meses depois, já coberta de flores, deitada num caixão.

Mas eu ainda não tinha ouvido falar na palavra luto.

Às vésperas do meu 22º aniversário, meu melhor amigo morreu. Leandro, a quem nós chamávamos Cepacol desde a adolescência, pôs fim à sua própria vida aos 24 anos. Importa citar tais circunstâncias porque ele tentou me ligar antes de cometer o suicídio: eu vi nitidamente seu número no visor do celular mas não atendi porque — esse porquê soa cada vez mais precário e desimportante, mas ainda não tenho coragem de subtraí-lo, é minha única defesa— estava toda atrapalhada, cheia de livros nos braços, entrando na sala de uma professora para entregar um dos últimos trabalhos da graduação. Lembro de ter pensado “eu ligo depois” mas não liguei, e aí passaram o tempo e o curso das causas e consequências emboladas umas nas outras.
Nessa ocasião sim, eu entendi a dimensão da perda, da culpa, da incompreensão, da vertigem diante do inexorável, da nossa fragilidade bastante agravada por estupidez e ansiedade. Não existe luto sem essa raiva pelo encadeamento irreversível dos atos, sem um apego às razões que se forja, no improviso, pra conseguir suportar outro dia.
Esse luto organizou os anteriores, inaugurou uma fila de perdas que já estava há anos formada e eu só não percebia porque tal é a prerrogativa da juventude. Mais do que isso, o luto pelo Cepacol antecipou os outros também, ele me deu à luz do fatalismo e da hierarquia dos afetos sob a ameaça constante de sua descontinuidade.

Eu comecei a ler Camus nessa época; a gente se consola como pode.

Quando decidimos visitar o México, eu estava bastante ferida pela morte recente do meu pai. O que na infância foi constatação, pura e desimpedida, — “esta pessoa existiu, já não existe mais” — tinha então se tornado ofensa grave à razão, uma injustiça com as conversas ainda não resolvidas, as desculpas ainda não negociadas. O núcleo do meu interesse era testemunhar a festa do Dia de Muertos: como festejar a morte sem perdoar sua devastação? Minha curiosidade, que pouco era além de uma vontade imensa de ver revelada alguma contrapartida à tristeza, não foi frustrada: tão temerosa quanto estive ao procurar aura da morte na tia desenganada, o que eu encontrei nas maquiagens de calavera, nos pães de muerto, na transformação da cidade num imenso cemitério cheio de velas, cravos-de-defunto amarelos e sobretudo de oferendas de comida, bebida e cigarros foi a vida em sua dimensão folclórica, extravagante, sensual — uma resposta carnavalesca à minha morbidez. A Katrina não é um simples memento mori, nem os festejos são uma visita dos vivos ao mundo dos mortos, é o contrário. O Dia de Muertos é o dia em que os mortos são convidados a desfrutar do mundo dos vivos, em que eles nos prestam homenagens, a nós, coitados, que sofremos tanto e somos tão breves.
A festa de Dia de Muertos me mostrou que a alegria é um componente necessário à nostalgia, assim como a reencenação dos rituais cotidianos dos entes amados são a própria extensão de sua existência no curso da nossa, uma extensão modesta, é verdade, dada a exuberância da eternidade na qual eles se encontram, mas a gente se consola como pode. O luto é um longo e delicado processo de preparação do entendimento da nossa própria morte, é uma reconciliação com a vida.

Aí sim eu acho que entendi o luto.

(acho)

“Entrem com destemor na casa do luto, pois a dor do luto é simplesmente o amor acertando as contas com seu inimigo mais antigo. E depois de todos esses anos humanos mortais, o amor está à altura do desafio.” Kate Baestrup

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aline

sorte no amor, azar no jogo e um fiapinho de manga preso no dente.