Eu resolvi que a pandemia acabou

aline
4 min readDec 31, 2022

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“ — Você acha que a sua morte é prematura? — perguntou.
— Toda morte é prematura. Não há nenhum motivo científico para não podermos viver cento e cinquenta anos. Tem umas pessoas que até conseguem, segundo uma manchete que vi no supermercado.
— Você acha que o que mais lamenta é a sensação de deixar coisas inacabadas? Certas coisas você ainda tem esperança de realizar. Trabalhos a fazer, desafios intelectuais a assumir.
— O que eu mais lamento é a morte. A única coisa a assumir é a morte. Não penso em mais nada. A questão é uma só. Quero viver.” Don DeLillo (in: Ruído Branco)

Não acredito em resoluções de começo de ano e os motivos são dois: um, que meus desejos e convicções não duram muito tempo, mudam de forma ainda que preservem, suponho, uma fagulha de consistência da alma. Quero uma coisa agora e depois quero outra, confiando que ambas respondem ao mesmo impulso, qualquer seja ele.
Dois, as circunstâncias mudam constantemente também, e a esta altura eu acho otimismo demais, ou de menos, tentar antecipar que tipo de barco você será diante de ventos e marés ainda não conhecidos.

Na minha família havia uma mística ruim em relação aos 40 anos. Meu bisavô e meu avô morreram cedo, aos 40 e poucos — ainda que essa idade pesasse diferentemente em suas respectivas épocas. Mas o cálculo do meu pai, ainda jovem, equacionou tudo e daí tirou um sinal de que também estava com a morte agendada. Aos 41 anos morreu meu tio, seu irmão mais velho, o que apenas reforçou seu terror supersticioso. Meu pai entrou e passou a década dos 40 esperando uma morte que não veio, e quando veio, ele já tinha 55 anos. Aí, as histórias que fabricava sobre si já eram outras e a superstição tinha ficado para trás, anedótica.
Ou era o que eu achava. Um dado que omiti até aqui é que esses homens (meu bisa, meu avô, meu tio) morreram de morte chamada, provocada direta ou indiretamente. A autodestruição, um traço que me parece agora tão marcado quanto cabelos ondulados e um certo esgueiramento do olhar, determinou a complexidade do destino de cada um deles.
Com os anos eu passei a suspeitar que o terror do meu pai era não da morte em si, mas desse encontro inevitável com o desejo de morrer, com a realização de um impulso sombrio, com a morbidez ancestral que se renova geração após geração na família. Acredito que ele era um homem assombrado pela hora da prestação de contas: consigo, com sua linhagem. Não é fácil encarar os riscos que sua vida e desejos implicam, as marcas que deixam no corpo, assumir a violência como uma língua nativa e ao mesmo tempo impedir que ela emerja e faça seu trabalho.

A pandemia recuperou esse dilema e potencializou seus termos: e se na condução do dia-a-dia estiver a brecha da morte, o vírus invisível espalhado no ar das lojas, dos mercados, das escolas, das academias, dos locais de trabalho e lazer? E se viver, simplesmente viver, agora significar assumir, consciente e inconscientemente, riscos e compromisso com o fim, não um fim disforme e hipotético, mas um fim avisado, contabilizado, televisionado toda noite no jornal? Aqueles leitos de UTI, aquelas covas. Permanecer vivo requereu um esforço de morte, de renúncia a tudo o que constitui a vida.
Minha irmã não suportou. Ela quis e decidiu-se a morrer, e num gesto deliberado, tentou inscrever a herança dos homens da família nessa grande tragédia mundial em que milhares morriam como moscas, todos os dias. Do encontro da morbidez familiar com a morbidez planetária veio o pior e mais longo ano de nossas vidas. Por meses, convivi com uma ideia à espreita, a de uma vocação familiar para a morte, zombando das minhas tentativas de racionalização.

Entendo o que querem dizer aqueles que pedem prudência e repetem que a pandemia ainda não acabou (estou com eles, usando máscara PFF2 por aí). Ainda há vírus, contágio, sequelas, etc. Mas a pandemia, naquilo que ela tinha de aterrorizante, acabou sim. O desconhecido, o arbitrário, a dimensão trágica de cada pequeno descuido se foi. Não só porque há vacinas e conhecimento acumulado sobre a dinâmica do vírus, mas porque coletivamente a gente adquiriu uma sabedoria de passagem. Como meu pai, que temeu por 10 anos morrer de uma verdade inominável, para entender que ele não estava condenado como imaginava. Que havia outros jeitos de viver e de morrer, também. Como eu, que completo 40 anos em 2023 e me recuso à simplicidade de qualquer resolução de ano novo; sei lá eu quem serei, que tempos serão estes e o que eles me farão desejar. A não ser — a não ser: quero viver. Em 2023 eu resolvi que a pandemia acabou.

Minha irmã está viva. Estamos.

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Written by aline

sorte no amor, azar no jogo e um fiapinho de manga preso no dente.

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