Juliette, mon amour

aline
3 min readMay 5, 2021

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Todo grande fenômeno requer uma explicação, mas a graça é que ele tende a escapar de todas as tentativas que se apresentam. O BBB é um fenômeno, a Juliette é outro. Ela é primeiro um fenômeno interno, que obedece à lógica do programa e seguiu um roteiro bastante consolidado: a casa persegue, o público protege. Jogo jogado, etc. É também um fenômeno externo, um sucesso de linguagem e marketing digital, um catalisador das métricas, a Midas das plataformas multimidia de sua geração. Mais etcs.

Porém há uma camada desse fenômeno que, se não explica o frenesi coletivo, talvez explique o individual, coisa bem minha. Faz um ano que só se fala em morte, aqui e na maior parte do mundo. A pandemia estabeleceu limites para a vida que nenhum contemporâneo tinha precisado acatar. E o que a doença fez, o governo Bolsonaro agravou. A morte inundou o assunto diário num país que já a reconhecia como elemento cotidiano, até constitutivo. A morte virou programa de governo, pílula de cloroquina, galhofa do presidente da república. No dia do “e daí?”, tinha morrido um cara bem querido meu. Enfim, favas contadas — 410 mil delas atualmente. A morte e a sua inevitablidade, no centro do debate sobre uso de máscaras na padaria. Deve-se ou não usar, tanto faz, a morte estava ali, fixa como horizonte da disputa. Seu princípio e seu fim. “Todo mundo morre”, decretava lá o presidente perverso e o povo todo morrendo mesmo, para lhe provar o argumento.

Eu não vi as primeiras semanas do BBB 21, no tuiter a conversa indicava um programa pesado, com “tortura psicológica”, “abuso moral”, eu passei muito longe. Quando comecei a assistir, algumas coisas já estavam estabelecidas. Lucas já estava fora, o gabinete do ódio já tinha nome, o G3 também. Indícios de rejeição e aprovação assentados. E se eu entendi direito, quando Juliette apareceu na tv, ela trouxe seu luto consigo. Eu me lembro da primeira vez em que a vi falar a respeito da irmã e “as cicatrizes”, bagagem que ela sempre avisou que carregava. Ela voltou a essas expressões e imagens diversas vezes, para falar de si, tentando se conectar consigo e com os outros, o que nem sempre deu muito certo. Jogo jogado, etc.

Entendo o apelo de Gil do Vigor, ainda que seguisse imune a sua vibe. Talvez porque meus afetos sejam mais parecidos com os da Juliette, nessa edição me interessei antes pelas cicatrizes, pelo cultivo da memória, da música (para espantar a tristeza), da fala (para pôr ordem nas ideias), pelas estratégias bobas de escamoteamento das coisas sérias — repetidas, repetidas, repetidas vezes. Gil do Vigor mereceria ser o Rei Momo do nosso primeiro carnaval pós-pandemia, com suas cachorradas, gritos e palminhas, suas declarações de amor e traições, com o sarcasmo autoderrisório, afinal, o Brasil tá mesmo lascado!, os alicerces da religiosidade prontos para acomodar uma libido transbordante. A alegria vigorosa, algo maníaca, que Gil propõe, eu acho, eu sinto, não cabe muito bem num Brasil que ainda não pôde começar a se reconstruir, a elaborar seu luto, que não tem daonde nem de quê forjar um pouco de esperança e meios para revidar.

Para mim, ter uma participante explorando em rede nacional os meandros da elaboração da perda da irmã no ano mais mórbido das nossas vidas não só fez sentido como me consolou um pouco. Meio desajeitada, é verdade, mas que sempre me soou encantadora. Juliette fala de morte como contrapartida da vida, ela conhece o preço, organiza todo seu sistema emocional e moral em torno da convicção da brevidade de tudo. A nota melancólica costuma ser monótona e cansativa mesmo, daí uma insistência circular em esclarecer e perdoar e ser perdoada, em achar um lugar na casa sem, contudo, contar com sua perenidade, em fazer graça, em sacar alguma leveza de um saco profundo carregado de chumbo; parte do público e dos confinados chamava isso aí de chatice. Tiago Leifert, no discurso de consagração, chamou de bondade.

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aline

sorte no amor, azar no jogo e um fiapinho de manga preso no dente.