Não sabemos exatamente que dia meu avô nasceu porque ele foi registrado já grande, com outros irmãos. Nos documentos, a diferença entre ele e a irmã Cida é de apenas 4 meses. Sempre rimos disso, mas não esperávamos que o falecimento repetisse a farsa do nascimento. É que no hospital, nos disseram que seu corpo cedeu à morte na manhã do dia 27 de dezembro; na declaração que nos entregaram, porém, consta o óbito às 18 horas e 47 minutos do 26 de dezembro de 2024. Vou viver sem saber e resolvi as coisas assim: ele se chamava José Luiz da Silva e veio quando veio, partiu quando partiu. Gaiato, driblou o espírito cartorial e se lançou na eternidade como um enigma.
Este é um inventário das coisas que eu sei e que eu não sei sobre meu avô — que eu sempre, desde pequena, chamei apenas de Zé, como aliás todos o chamavam. Na boca dos netos, contudo, Zé é um título ainda mais importante, mais afetivo, mais distintivo do que “vô”. Ele era o nosso Zé.
I.
Eh, vida boa
quanto tempo faz?
— João Nogueira
Seu pai João Luiz era branco, sua mãe Benedita, preta. Casaram-se no começo do século XX, em algum canto de Minas Gerais. Deles, 11 filhos nasceram. Dois morreram ainda bebês. O Zé se referia a esses irmãos com uma síntese inconcebível: “eles morreram anjinhos”.
Lazinho, de Lázaro, morreu num acidente horrendo, ao cair no tacho fervente de sabão que a mãe preparava. Sobre esse menino, o Zé não falava quase nada, nunca. Eu não sei o que ele viu ou ouviu naquele dia.
Numa época em que o pai João já estava morto, o caçula Luiz Carlos foi abusado por um vizinho. Ele era criança e contou para a mãe. Seria natural contar em seguida para o Zé, apelando à sua condição de irmão mais velho. Mas a mãe temia que o rapaz decidisse que apenas o assassinato do vizinho equacionaria a desonra e a vingança da família; ela fez suas próprias contas e, evitando a desgraça do filho mais velho, calou-se. Eu não sei se meu avô teria mesmo reagido assim, num ímpeto de morte. Sei que Luiz Carlos cresceu e, um dia, num bar, foi humilhado pelo abusador, que o chamava de “mulherzinha”. Foi para casa, pegou uma faca, voltou ao bar, matou-o, com ódio e convicção. A sequência de sua vida é um folhetim policial: foi condenado e cumpriu pena, saiu da cadeia, assaltou, foi preso e solto outras vezes, matou outra pessoa, chegou a ser alvejado com nove tiros, sobreviveu dessa vez para morrer num outro confronto com a polícia. Deixou viúva e dois filhos, hoje todos falecidos.
A irmã Antonia era muito bonita, diziam. Ela ficou amiga das irmãs da minha avó, pois as duas famílias se aproximaram desde o casamento da (minha avó) Tida e do Zé. Tonia teve sua cota de bailes, de danças, de promessas e olhares dos moços. Escolheu um para amar, e dele ficou noiva. Porém, o sujeito, cujo nome desconheço, desistiu do compromisso. A juventude e a beleza de Tonia, que eram suas joias, tornaram-se sua maldição. Ela não foi capaz de suportar a rejeição, nem de se arriscar à possibilidade de um novo amor, um novo compromisso. A família argumentava que uma moça bonita não poderia ser tão triste assim. Ela lhes provou que sim. Aos 26 anos, fez o cabelo no salão, pôs seu melhor vestido e se jogou do Viaduto do Chá.
O irmão Silvio era risonho e musical. O violão, de tanto que ele tocava, se fundiu ao homem e virou seu nome, amigos e parentes o chamavam de Viola. Esse era o irmão preferido do meu avô e eu mesma tive o prazer de conhecê-lo. Dele, lembro que tinha uma gargalhada sonora, benevolente, ria com o corpo todo, a gente sentia vontade de rir junto. Um dia, eu era criança, a gente recebeu um telefonema e soube que o Viola tinha se dado um tiro no coração. Parece, disseram, que os problemas financeiros levaram a uma depressão, que gerou impotência sexual, que piorou a depressão. Às vezes, meu avô ficava com o olhar perdido e era possível ouvir balbuciar “Não entendo como meu irmão foi fazer uma besteira dessas”.
Dois irmãos — Tite e Tião — tiveram vidas e mortes menos trágicas. Duas irmãs — Mara e Cida — sobreviveram ao meu avô, mas não saberão que ele morreu porque estão muito velhinhas e suas filhas querem proteger o que lhes resta de lucidez e do sentimento de permanência.
II.
Que malandro é você
Que não sabe o que diz
— Originais do samba
O Zé trabalhou duro na roça, na indústria e no comércio, sem deixar que a disciplina interferisse na vocação da sua alma, que era de festa. Nunca atrelou sua honra à labuta, tampouco fez de seu ofício uma identidade. Frequentou todos os lugares do Moinho Velho e do Ipiranga onde houvesse uma cancha de bocha, uma mesa de sinuca ou pedras de dominó. Nisso sim, se fez famoso: era um exímio jogador de esportes de boteco. Por ter atrofia nas mãos e uma evidente baixa escolarização, às vezes algum desavisado tentava tirar proveito desafiando-o a jogar por dinheiro. O Zé aceitava, perdia a primeira rodada e pedia revanche pelo dobro, quiçá o triplo do valor. E então, dava seu show e voltava para casa com o bolso cheio.
Eu vou ficar aqui até madrugada voltar
E trazer você pra mim
— Benito di Paula
Conheceu minha avó num desses bailes de juventude de bairro, pode ser que fosse uma quermesse. Sei que minha avó era dessas mulheres bravas, e ele se atreveu a tirá-la para dançar. Dançaram, namoraram. Ele contava que o pedido de casamento veio fácil, mas diante da proposta, a Tida respondeu, séria, apenas, “Vou pensar”. Meu avô, aos risos, disse “Não pensa muito, não”. Tudo nessa história reflete quem eles foram a vida inteira, como indivíduos e como casal. Ela com alma de ferro, ele com alma de passarinho. Tiveram uma única filha, minha mãe, para quem meu avô foi presente e amoroso até o último dia.
III.
A sorrir, eu pretendo levar a vida
— Cartola
O que me fascina no Zé é ter conseguido manter a fé na vida apesar das fatalidades que acometiam seus irmãos, um depois do outro, apesar da dureza de tudo. É difícil explicar a leveza de sua personalidade porque esse conceito anda meio desgastado ultimamente. A leveza dele não era produto de um esforço psicológico contra a ansiedade, de um processo de contenção do ressentimento. Por intuição ou por escolha, ele tangenciava até o reconhecimento da malícia e da raiva dos outros, e costumava atribuir os conflitos a um problema de interpretação, uma má vontade pontual da inteligência. As inimizades e antipatias eram uma via de mão única e ele jamais, jamais as retribuía.
Mas a tristeza, não, essa ele acolhia e entendia, lembrava seus mortos e lhes fazia deferência, reservando até aos falecidos jovens o tratamento honorável que se dá aos antepassados. Antes do almoço, que ele comia com gosto, o Zé lubrificava a alma com uma dose de rabo-de-galo e brindava tudo e nada: os vivos, os mortos, um evento importante, a obviedade de estar vivo. Erguia o copo e evocava seu feitiço: Viva!
Meu avô gostava muito de esporte, de dança, de usar seu corpo para a festa e para a graça. Já era assim quando nasci e as impressões dos outros confirmaram as minhas, ele sempre foi simples e livre — provavelmente a pessoa mais livre que eu conheci. Foi feliz, sem excessos, talvez por teimosia.
IV.
“É uma perda muito grande mesmo. É difícil medir, avôs e avós morrem. Mas no seu caso, isso não descreve o fenômeno, o que aconteceu com você. Dizer ‘morreu meu avô’ não comporta a sua perda.”
— L.
A amiga que me mandou essa mensagem entendeu algo que eu mesma ainda não tinha conseguido verbalizar. Meus avós exerceram na minha vida (e na dos meus irmãos) uma influência tão importante, tão fundamental, que nós costumamos dizer que eles nos salvaram.
O paradoxo da minha família é que a brutalidade do meu pai e a negligência da minha mãe criaram as condições para que meus avós se apresentassem como referências positivas, contrapesos que equilibravam o jogo e não nos deixaram naturalizar completamente as dinâmicas nefastas que rodavam a casa onde nós todos morávamos. Meus avós não substituíram meus pais, que foram presentes e ativos na nossa formação, mas também não permaneceram naquele papel secundário e complementar típico de avós, o da transgressão adorável das regras, da autorização de mimar eventualmente. Meus avós participaram intimamente da nossa vida, mostrando generosidade e rebeldia quando meus pais exigiam gratidão e submissão.
O tal amor incondicional, um grande lugar-comum das relações parentais, eu percebi, era o que a Tida e o Zé nos tinham oferecido. Um amor verdadeiramente incondicional brilha muito mais à luz de condições e mesquinharias que outro amor impõe, não porque competem pela alma do objeto amado, mas porque, com sorte, a criança amada incondicionalmente se torna livre e é só na liberdade que o amor se realiza em plenitude, cria raízes, vira primavera. O amor dos meus avós se revelou frutífero à medida em que nós, as crianças, uma vez adultas, pudemos tentar criar um caminho próprio e diferente dos ciclos de violência que se repetem há tantas gerações.
Quando eu dizia “Eu te amo” para o Zé, ele costumava responder “Nois se ama, fia”. Eu sempre adorei essa correção que indicava algo além da reciprocidade (você me ama, eu te amo de volta) e me lembrava que ali, entre nós, havia espaço para um amor total, onde cada um amava o outro e a si mesmo (nois se ama, fia, nois se ama). Aprender a amar a si mesmo talvez seja um dos únicos objetivos concretos da educação, e é dificílimo porque a racionalização do ódio autodirigido está aí, sempre à mão. Tocar a vida com prazer e simplicidade, não temer a morte nem ansiá-la, não temer o amor nem aprisioná-lo, atrever-se a dançar com o coração partido, eis o legado do Zé.
Nos últimos anos, meu avô ficou cego. Passava seus dias sentado no sofá, ouvindo futebol ou música. Cantarolava seus sambinhas preferidos. E, do nada, passou a recitar um versinho na mesa, quando almoçávamos juntos: viva eu, viva tudo, viva o Chico Barrigudo. Words to live by.
Como é, por exemplo, que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separaçãoSei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão— Tom Jobim e Vinícius de Moraes