Tida

aline
3 min readMay 23, 2022

--

“Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: — Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…
Mas a avó já não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.” Guimarães Rosa (in: Fita verde no cabelo)

Eu quero escrever rápido, antes que este texto seja um obituário.

Um mito — vou começar por aqui — é uma composição narrativa que sintetiza uma verdade profunda e, por isso, atravessa eras e não só alicerça como nomeia os elementos da experiência humana. Tanto, que nós costumamos atribuir a estes elementos o adjetivo universais. Ninguém nunca vai saber o que veio antes, o amor ou o primeiro verso de amor, porque essas duas coisas provavelmente inventaram-se mutuamente.

A história da Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, elabora numa história de horror (reconvertida mais tarde em história de heroísmo para acomodar as mudanças culturais em relação à infância) os riscos que se apresentam quando uma menina entra na puberdade. Numa determinada configuração de mundo, é preciso dizer às mocinhas que se mantenham no caminho certo, sob orientação de suas mães, longe dos cantos sombrios da floresta, longe do Lobo e de suas intenções predatórias. O instinto que as protege do Lobo, deste Lobo, não é atávico nem desperta espontaneamente, segundo leis naturais, pelo contrário, ele é sedimentado culturalmente, sob a abóbada da sabedoria comum que dá sentido, entre outras coisas, ao corpo e às suas linguagens. Em suma: o sexo, apenas sugerido e metafórico, pode levar ao engano e à morte literal.

Quando Guimarães Rosa escreve sua versão da história da Chapeuzinho, varre muito do que era premente na narrativa original, e ainda assim, algo essencial parece estar lá, não só preservado como iluminado. Acho que Rosa decidiu que essa não era uma história a respeito dos perigos do sexo, mas do perigo que ronda a vida — o maior deles. A pior coisa que pode nos acontecer é testemunhar a morte, entendê-la à força da experiência. O que macula mais a infância do que a consciência de sua temporalidade, o vislumbre de tudo o que nós vamos perder? O desaparecimento da vovó, devorada pelo Lobo ou pela velhice, diminui a quantidade de amor disponível no mundo para a Chapeuzinho. O bosque fica menos familiar, as regras da vida menos cognoscíveis.

Tudo isso para dizer que minha avó está morrendo, já faz um tempo aliás, mas agora o processo está acelerado. Eu quero escrever esse texto antes que os verbos no passado se imponham e eu me sinta impelida a sumarizar sua vida, suas virtudes e decretar a saudade que ela deixa (e é muita). Sua infância na roça, sua juventude como operária, a vida doméstica nas margens urbanas, sua pobreza imensa, sua fome, sua vocação de ferro para o trabalho e para o sacrifício. Sua resistência em dizer “eu te amo”, sua desconfiança das palavras, sua fé nas ações, no alimento, na bondade e em Nossa Senhora da Aparecida. Mas esse texto eu não quero nem consigo escrever, pois embora seu corpo hoje esteja encurvado, frágil e grotescamente medicado, eu ainda penso nela como a Leoa que ela é e sempre foi. Minha avó dispensa história.

Mesmo sem mobilidade, sem audição, sem dicção, mesmo que suas memórias agora deturpem sua percepção do presente, eu ainda tenho suas mãos ao meu alcance. Essas mãos parecem guiadas por alguma intuição maior, um hábito corporal de amor. Elas estão sempre lá, disponíveis para segurar as minhas, transmitindo o resto de calor e força que há naquele corpo. A mão forte da minha avó prende meu braço assim que eu inicio os pequenos gestos de fim da visita:

— Já vai, fia?

Mas quem vai é ela, um tanto mais a cada vez. A Tida, de Cida, de Aparecida. Quem é que poderia acreditar que a Tida vai deixar de existir? Eu, não. Eu também tenho medo do Lobo.

--

--

aline

sorte no amor, azar no jogo e um fiapinho de manga preso no dente.